O Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), um dos pilares do financiamento imobiliário e da proteção ao trabalhador brasileiro, enfrenta um risco iminente de crise estrutural, conforme o presidente da Caixa Econômica Federal, o paraibano Carlos Vieira. A advertência foi feita durante um evento no Rio de Janeiro, onde Vieira sublinhou a necessidade urgente de uma revisão no modelo atual de financiamento habitacional. Este modelo baseia-se primordialmente nos recursos do Fundo, que, por sua vez, é concebido com uma dupla finalidade: atuar como uma poupança compulsória para o trabalhador e como um fundo de desenvolvimento para setores estratégicos. A concorrência crescente com novas demandas e a pressão por usos não convencionais têm comprometido a sustentabilidade do FGTS, configurando uma séria ameaça ao seu propósito original e à sua capacidade de suporte a setores vitais da economia, como habitação, saneamento básico e infraestrutura urbana.
Vieira explicou que, embora o Brasil esteja atualmente gerando empregos formais e, consequentemente, saldos positivos no FGTS, a proliferação de propostas legislativas para usos não convencionais dos recursos representa uma grave advertência à sua solidez. Ele citou como exemplo o Projeto de Lei 807/2023, que busca permitir o saque do FGTS para mulheres vítimas de violência doméstica. Embora reconheça a relevância social e a urgência da medida, o presidente da Caixa alertou que a aprovação de tal PL poderia significar um desvio de R$ 70 bilhões do Fundo. Este montante, se sacado, reduziria drasticamente o capital disponível para empréstimos e investimentos de longo prazo, impactando diretamente a saúde financeira do Fundo e sua finalidade primordial de fomento ao desenvolvimento e proteção ao trabalhador. Em essência, cada real sacado para uma nova finalidade é um real a menos para o financiamento de moradias populares ou obras de saneamento.
Acho que a gente precisa rediscutir isso, essa estrutura de funding na forma que existe, como o FGTS. Vamos ter uma crise muito grande do FGTS
Outros projetos que estão de olho no FGTS
O PL 807/2023 é apenas um entre vários que ilustram essa tendência de descaracterização. Outras propostas em tramitação no Congresso Nacional visam destinar recursos do FGTS para fins que se distanciam dos objetivos iniciais de amparar o trabalhador em caso de desemprego ou aposentadoria e fomentar o crédito imobiliário. Entre elas, destacam-se:
Projetos para Educação: diversas iniciativas, como o PL 3371/2020, propõem a utilização do FGTS para custear despesas educacionais, como mensalidades em cursos superiores, materiais didáticos ou intercâmbios.
Projetos para Saúde: há propostas, como o PL 510/2022 e o PL 1709/2023, que buscam permitir o saque para tratamentos médicos não cobertos pelo SUS ou planos de saúde, incluindo doenças raras ou cirurgias específicas (como o PL 272/2023 para cirurgia bariátrica).
Projetos para Acessibilidade: o PL 1713/2023 sugere o uso do Fundo para a aquisição de equipamentos e tecnologias assistivas para pessoas com deficiência, visando promover maior autonomia e inclusão.
Essas iniciativas, por mais que tenham um cunho social importante e legítimo, desafiam a estrutura de captação e aplicação do Fundo. O FGTS foi originalmente criado em 13 de dezembro de 1966 com dois propósitos claros: ser uma poupança compulsória para o trabalhador em situações de demissão sem justa causa, aposentadoria, compra da casa própria, ou doenças graves, e servir como funding (financiamento) robusto para investimentos em habitação popular, saneamento básico e infraestrutura urbana. A diluição de seus recursos para novas finalidades gera um custo de oportunidade significativo, pois cada real direcionado a um novo propósito é subtraído da capacidade do Fundo de subsidiar juros para o crédito imobiliário ou de financiar obras essenciais que beneficiam milhões de brasileiros.
“Recentemente, nós tivemos um projeto de lei que trazia a possibilidade de você usar o recurso do FGTS como indenização de questões, por exemplo, ligadas aos assédios ou à violência doméstica com as mulheres. Nós reconhecemos isso como uma coisa super importante. Mas à medida que passasse no Congresso, você tiraria R$ 70 bilhões do FGTS, então você ia tirar mais recursos”, afirma Carlos Vieira.
Panorama financeiro do FGTS: números sob pressão e a sustentabilidade do modelo
Para compreender a dimensão do alerta, é crucial analisar a situação financeira e a estrutura de capitalização do FGTS. O Fundo de Garantia do Tempo de Serviço é uma das maiores fontes de investimento do país, funcionando como um banco de desenvolvimento com recursos próprios. De acordo com relatórios e divulgações oficiais da Caixa Econômica Federal, do Conselho Curador do FGTS (CCFGTS) e do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), em 2023, o patrimônio líquido do FGTS alcançou cerca de R$ 1,3 trilhão, refletindo o valor total de seus ativos (investimentos, empréstimos concedidos, caixa) menos seus passivos. O saldo total das contas ativas e inativas dos trabalhadores, que representa o valor devido aos cotistas, girava em torno de R$ 730 bilhões. No mesmo ano, a arrecadação foi robusta, impulsionada pela geração de empregos formais, que contribui mensalmente com 8% do salário de cada trabalhador formal.
Historicamente, o FGTS tem se mostrado superavitário. Em 2022, por exemplo, o Fundo registrou um lucro líquido de R$ 12,8 bilhões, dos quais R$ 12,7 bilhões foram distribuídos aos trabalhadores. Essa distribuição anual de resultados é um mecanismo importante que visa remunerar as contas dos trabalhadores acima da Taxa Referencial (TR), muitas vezes superando a rentabilidade da poupança, e é crucial para manter o poder de compra dos saldos. No entanto, o volume de saques tem crescido consideravelmente, impulsionado por novas modalidades e pela necessidade dos trabalhadores. Em 2023, o total de saques atingiu a marca de R$ 195 bilhões.
A maior parte dos recursos do FGTS, cerca de 70% a 75%, é tradicionalmente direcionada para habitação, saneamento e infraestrutura, por meio de fundos como o Fundo de Desenvolvimento Social (FDS) e o Fundo de Apoio à Produção de Habitações Sociais (FAPH). Em 2023, a Caixa Econômica Federal contratou mais de R$ 75 bilhões em crédito imobiliário utilizando recursos do FGTS. Este fluxo é vital para o setor da construção civil, gerando empregos e impulsionando a economia, e para a realização do sonho da casa própria para milhões de brasileiros, especialmente em faixas de renda mais baixas, através de programas como o Minha Casa Minha Vida. A capacidade do FGTS de oferecer juros subsidiados para a habitação popular é um diferencial que o mercado financeiro tradicional não consegue replicar.
O principal ponto de preocupação levantado pelo presidente da Caixa não é um déficit imediato, mas sim a sustentabilidade a longo prazo e a integridade da sua estrutura de financiamento. A crescente pressão para que o FGTS sirva a múltiplos propósitos, que não os originais, pode diluir sua capacidade de investimento nos setores essenciais e de proteção ao trabalhador. Se projetos que desviam bilhões em recursos forem aprovados, a capacidade de gerar crédito imobiliário a juros mais baixos, de financiar obras de infraestrutura e saneamento, e de remunerar adequadamente as contas dos trabalhadores será severamente comprometida. Isso culminaria na “crise muito grande do FGTS” que o presidente Carlos Vieira teme, transformando um robusto fundo de desenvolvimento e proteção social em um mero “caixa” para demandas pontuais. A discussão, portanto, não é sobre a validade social das novas propostas em si, mas sobre a viabilidade de manter o FGTS como um fundo robusto e eficaz para suas finalidades históricas diante de tamanha pulverização de uso e a consequente perda de foco estratégico.
Fonte: jornaldaparaiba.com.br | Publicado em 2025-10-01 04:00:00
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